domingo, 1 de abril de 2012

"Sem Pressa E Com Respeito"

Minha ‘quase-primeira-vez’ em uma escola foi aos quatro anos de idade. Digo ‘quase’, porque foi uma tentativa frustrada: após um dia de muito stress e choro, minha mãe, contrariando os palpites das professoras da escolinha – “é assim mesmo no começo, logo ela acostuma” –, preferiu seguir seu instinto, e adiou por mais um ano minha entrada na vida escolar. Só voltei a ir à escola no ano seguinte, já com cinco anos e meio, começando no que naquela época chamávamos de ‘pré-primário’ (ai ai, vou me sentir velha agora!).

Com pouco mais de cinco anos, ainda me lembro da sensação, ao vivenciar meu primeiro dia na escola: não digo que foi totalmente confortável, pois como já contei aqui em outras ocasiões, eu fui uma criança extremamente tímida, fechada no próprio mundo, e começar uma experiência totalmente nova, cercada de gente desconhecida, era sempre algo bastante trabalhoso. Mas tenho certeza que não ter sido deixada à minha própria sorte da primeira vez, quando demonstrei não estar preparada, fez toda a diferença para que, quando a hora chegou, eu me sentisse segura para encarar essa nova etapa da vida.

Quando eu era criança, a ‘adaptação’ da criança ao ambiente escolar praticamente não existia: a mãe chegava trazendo a criança pela mão, entregava-a na porta da escola, dava tchauzinho e voltava no final do período. Pronto, acabou-se. Se a criança chorasse, sentisse falta da mãe, de casa, não se adaptasse ao novo ambiente, às professoras, aos coleguinhas? Bem, fazia parte do pacote, e a vida era assim mesmo, com o tempo tudo se arranjava.

Hoje, a grande maioria das escolas já lança um olhar mais atencioso, menos endurecido, sobre a entrada das crianças na escola, sobre este início tão delicado e importante da vida fora dos limites da família. Já muito se fala sobre a importância da presença da mãe, do pai, da avó ou de um cuidador em quem a criança confie, para que a transição casa/escola seja suave, e a criança não se sinta perdida, sem referências.

Mesmo assim, ainda é coisa rara encontrar uma escola em que o tempo da criança seja respeitado de fato, seja ele qual for, sem qualquer tipo de padronização ou expectativa. Quando estava buscando uma escola para as minhas filhas mais velhas, alguns anos atrás, lembro-me que na maioria dos lugares que visitei eram listadas uma porção de regras relativas à adaptação, que era “livre, pero no mucho”: a mãe TEM que ficar aqui ou ali, a criança NÃO PODE fazer isso ou aquilo, o período MÁXIMO de adaptação é de tanto ou tanto tempo.

Não acredito em adaptação que coloque quaisquer tipo de limites pré-determinados, porque para que a coisa funcione respeitosamente, é preciso que a criança, e mais ninguém, determine o andamento do processo. No período de adaptação de Ana Luz e Estrela, não houve qualquer tipo de limitação prévia do tempo que eu estaria por perto, dentro da escola, acessível a elas para quando demonstrassem precisar da minha presença; elas ficavam livres para me procurar quando assim desejassem, sem cerceamento, e eu estava sempre em lugar de fácil acesso; se eu as escutava chorar, tinha toda liberdade para me colocar à disposição.

A adaptação delas na escola durou pouco mais de quinze dias. Enquanto eu ia e vinha da escola, aumentando gradativamente o tempo que passava fora e elas ficavam lá sozinhas, ouvi muitas e muitas vezes, de gente com quem conversava sobre o processo que estávamos vivenciando, comentários do tipo ‘mais do mesmo’: “ah, não fica tão por perto não, senão elas não se acostumam nunca!”, “é duro  no começo, mas a criança precisa passar por isso, não tem jeito!”, “se chorar um pouquinho, não tem problema, faz parte e logo passa”. Eu me perguntava: por que, meu deus, acreditamos sempre que os aprendizados têm que acontecer pela dor, e não pelo amor?

Nunca deixei minhas filhas chorando na escola. Nem mesmo um dia. É algo que vai contra tudo o que acredito e desejo para elas, na contramão de uma atitude respeitosa, amorosa, empática. A transição da casa para a escola é um momento importantíssimo na vida de uma criança: ela está ampliando seu universo, expandindo seu círculo afetivo, de confiança. É um rito de passagem que não pode e não deve ser feito atropeladamente, com tempo pré-determinado. Cada criança tem seu tempo para assimilar esta mudança, e este tempo deve ser respeitado, olhado com carinho e atenção.

Quando converso ou ouço falar sobre adaptação escolar, e escuto que deve ser feita “sem muita frescura”, como se o sofrimento da ruptura brusca fosse um mal necessário, penso em quantas transições desrespeitosas forçamos a nossas crianças, teoricamente para ‘prepará-los para a vida’: chorar sozinho no berço para não ‘acostumar mal’ no colo, consolar-se com uma chupeta enfiada na boca para não ‘depender’ do seio materno, dormir sozinho no quarto para não atrapalhar a vida dos pais, mamar em intervalos pré determinados para não ‘tiranizar’ a mãe – e isso é só o começo.

Por que, afinal, esforçamo-nos tanto para ensinar a nossas crianças que o mundo é um lugar inóspito e implacável, e que é preciso aprender o mais rápido possível a sobreviver nele, de preferência sem ajuda? Que tipo de geração futura estamos criando, ao enfiar desde cedo na cabeça de nossos filhos que precisar de acolhimento é fraqueza, que pedir apoio,colo e carinho é covardia, que desejar ser respeitado no próprio tempo e nas próprias capacidades e limitações é defeito, debilidade, derrota?

Eu prefiro ensinar a minhas filhas que o mundo, embora cheio de coisas desagradáveis e contraditórias, é antes de tudo um lugar bacana de se viver, cheio de gente boa com muito amor para dar, e que admitir as próprias dificuldades e pedir ajuda para superá-las não é fraqueza, é força. Seja na hora de ir para a escola, de dormir fora de casa pela primeira vez, de fazer a primeira viagem sem supervisão, seja em qualquer ‘primeiro’ ou ‘primeira’ da vida de minhas filhas, eu espero que elas se sintam sempre amparadas e seguras, certas de que têm com quem contar.

E que seja então como dizia o poeta: “se nada nos salva da morte, que pelo menos o amor nos salve da vida”*.

* Pablo Neruda
 
 
 
(Texto de Renata (Tata), publicado no Blog Mamíferas em 28 de março)
 
 

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