sábado, 12 de maio de 2012

Especial Dia das Mães - Você é mãe o suficiente?

"Você é mãe o suficiente?" - a pergunta que vale mais que a imagem.

Às vésperas do dia das mães, a Revista Time sacudiu a internet, os ânimos e acendeu o fogo de uma discussão que é, por si só, altamente inflamável. Publicou, como matéria de capa (sobre a qual trata o post anterior), um artigo sobre o attachment parenting, ou criação com apego, sobre a qual eu sempre falo aqui nesse blog. Uma matéria com alguns equívocos, algumas confusões mas que, ao meu ver, no frigir dos ovos, tendeu mais pra análise positiva do assunto do que para a crítica ou ironia. Achei positivo. Todo mundo interpretou o incêndio como tendo sido causado não pelo texto, mas pela foto da capa: uma mãe, Jamie Lynne Grumet, de pé, amamentando seu filho de 3 anos de idade, que alcança seu seio com a ajuda de uma cadeira.

Bastou.

Como enxame de abelhas sacudido, veio gente de todo lado analisar, criticar, emitir sua opinião sobre o assunto. A página da revista no Twitter virou lama, com comentários ofensivos, violentos, sendo distribuídos com hostilidade desmedida e desproporcional. Como se naquela imagem algo muito grave estivesse sendo feito à mulher, à criança, ou a ambos. A mídia se encarregou de dar seu toque incendiário e deu-se a confusão. Os alertas do Google chegaram nas caixas postais recheados de notas, menções e matérias que dariam um compêndio. Um compêndio bizarro e de mau gosto.

E porque as culturas são diferentes, o que chocou a uns no hemisfério norte ocidental (leia-se Terra do Tio Sam), não foi o motivo de indignação, espanto ou choque abaixo da linha do Equador (leia-se Terras Tupiniquins).

Para os norte-americanos, a foto de capa contém "claro" conteúdo sexual - o que é facilmente compreendido: os EUA, que de liberdade mesmo só tem a estátua, orgulham-se de sua sociedade sexualmente reprimida, com séria dificuldade para naturalizar comportamentos que são naturais. A própria mãe retratada na capa afirma ter sido acusada de molestar sexualmente seu filho por amamentá-lo em "idade avançada". Ele tem 3 anos, é isso que chamam de "avançada" neste caso. Uma senhora do Arkansas, muito indignada com tamanha afronta da capa, manifestou-se dizendo que aquilo "beirava o voyeurismo" e que "até uma vaca sabe quando desmamar um filhote". Rancor, hostilidade, raiva. A amamentação prolongada desperta a profundeza dos sentimentos daqueles que se esforçaram a vida inteira por cobrir suas más resoluções.

Enquanto os norte-americanos se inflamaram pelo suposto (e imaginado) conteúdo sexual da capa, aqui embaixo a indefinição é o regime.

Alguns meios de comunicação, no Brasil, tentaram (vem tentando faz tempo) americanizar a discussão, puxando a brasa pra sardinha erótica, querendo copiar o discurso sexualizado do Tio Sam. O portal Terra publicou matéria cujo título, "Revista estampa criança com boca no seio da mãe", mostra a resistência em aceitar a amamentação prolongada e a vontade manifesta de sexualizar o debate. Na sequência, afirma que "a foto ilustra uma matéria sobre amamentação após a idade adequada que, de acordo com o ginecologista e obstetra, diretor do Centro de Fertilidade da Rede Dor, José Bento, é de dois anos de vida".

Ao usar a expressão "idade adequada", o texto já dá o tom de sua ignorância e - o que é pior - avalizada por quem se considera de posse de um conhecimento que não lhe diz respeito, uma vez que ginecologistas e obstetras não têm nada que dar pitaco em amamentação. Ainda mais quando vai contra o que a própria Organização Mundial de Saúde - a quem deveriam prestar contas em função de sua profissão - recomenda (amamentação exclusiva por 6 meses e prolongada por 2 anos ou mais). Ou mais.

Mas lembre-se que aqui embaixo, onde menos de 10% dos bebês são amamentados pelo tempo recomendado, a indefinição é o regime.

Enquanto uns poucos tentaram sexualizar o debate, outros tomaram a amamentação prolongada como "modismo" e outros, ainda, permaneceram em cima do muro, provavelmente temendo perder leitores.
Mas o fogo tomou conta mesmo foi dos grupos de discussão sobre assuntos maternos, paternos e de criação de filhos. Mas o combustível não foi a imagem em si. Foi a frase que a acompanha.

"Você é mãe o suficiente?"

Muitas mulheres não gostaram dessa frase. Tá, estou sendo bacana. Detestaram essa frase. E o discurso desviou da amamentação prolongada para o juízo de valores.

Não sei se você sabe, mas existe um termo bastante utilizado em listas de discussão, grupos de apoio e aglomerações cibernéticas maternas: o "menos mãe". Ou, ainda, sua versão ridicularizante "menas main". E é como uma sirene: surgiu um "menos mãe" na conversa, dispara alarme, acende luz vermelha, mangas são arregaçadas e lá vem um embate. O "menos mãe" simboliza um conflito. Um conflito -absolutamente injustificável e incompreensível - entre formas de maternar, que obrigatoriamente traz juízo de valor, comparação em termos de melhor/pior, e desentendimento. Não abarca o conceito de RESPEITO ÀS DIFERENÇAS, muito pelo contrário. É a guerra declarada.

Mas conflito entre quais formas de maternar?

Entre formas mais tradicionais e formas alternativas. A matéria da capa da Time fala sobre uma dessas formas alternativas de maternar: a criação com apego, o attachment parenting. Quem materna dessa última maneira tende a respeitar a intuição, o afeto e a conexão com os filhos, e isso fica evidente nas ações e práticas que adota, como o respeito ao parto e nascimento, amamentação prolongada, o dormir compartilhado, o uso de slings, a alimentação com respeito, a rejeição ao choro desassistido, a recuso ao uso de mamadeiras, chupetas, alimentadores, e uma ampla variedade de práticas que envolvem ativamente a mãe e o pai na educação e criação dos filhos.

Quando alguém afirma que é dessa maneira que cuida dos filhos, é muito comum que a mãe tradicional - chamo de mãe tradicional aquela que replica os comportamentos do senso comum sem questionar-se sobre os motivos e consequências, que se sente confortável em seguir a massa, em ser guiada por orientações pediátricas, midiáticas, enciclopédicas e afins - dispare em direção àquela que ela vê como oponente: "mas eu não sou menos mãe por não fazer isso".

Ninguém a chamou de menos mãe por isso e por aquilo. Mas, por algum motivo daqueles que só o Freud e a mãe dele explicam, ela se sente compelida a dizer. Não sou menos mãe por isso! Como se houvesse uma mais mãe e uma menos mãe, e não um monte de mulheres dando o melhor de si.

Então o "Você é mãe o suficiente?", ao lado de uma mulher amamentando um filho que não é bebê, suscitou o debate, e o que pintou de "menos mãe" nos discursos não tá no gibi. Mesmo entre quem defende as práticas da criação com apego, surgiu o medo do embate, o medo da discórdia.

Então, eu vou dizer aqui o que já disse em outros lugares sobre o que eu achei disso.

Eu adorei!

Apenas porque não vi na manchete um convite ao ataque e, sim, ao confronto. Mas não o confronto de "umas" por "outras". O confronto da mãe consigo mesma.

Diariamente, são veiculadas capas de revistas e matérias que enaltecem o lado mecanicista da maternidade. Mulher engravatada segurando a mamadeira, a busca desenfreada pelas babás nos EUA, mulheres que se orgulham de dizer que marcaram a cesárea porque isso é mais moderno, o empurrão da mulher ao mercado de trabalho que exclui a presença dos filhos. Todos os dias nós somos confrontadas com esse estereótipo capitalista-agressivo de mulher. E quando vem uma única capa problematizando a questão por seu oposto eu vou achar ruim apenas porque vai levar à discussão?! Nunca!

Sim, eu achei excelente uma revista como a Time, totalmente imersa no mundo capitalista, mecanicista, reducionista, abordar a questão dessa maneira. Acho mesmo que é um avanço. Principalmente quando se considera que isso foi feito num país que expulsa nutrizes aos montes de locais públicos (a capa foi divulgada poucos dias depois de uma mulher ser constrangida no Museu de Arte de Los Angeles por amamentar sua filha).

Se vai suscitar a polêmica, a problematização? Eu espero que sim! Espero que mulheres leiam a provocação e se sintam provocadas a responder a si mesmo a pergunta: "Estou sendo mãe o suficiente?", mas não o suficiente para os outros. O suficiente para si e seus valores. Quem encarou essa matéria do ponto de vista do conflito do "mas eu não sou menos mãe por não amamentar meu filho já crescido", está precisando se afirmar um pouco mais e ser mais segura de si, porque se uma frase a faz se questionar sobre isso, é porque não parece estar muito convencida de sua própria prática.

O fato de se tentar responder a uma pergunta complexa como essa ("Você é mãe o suficiente?") leva, no mínimo, à reflexão. Porque uma pergunta assim, direta, exige RESPOSTAS mas, principalmente, mulheres preparadas para respondê-la. Aquelas que se sentiram ofendidas, intimidadas, confrontadas (como o são todo santo dia aquelas que amamentam em público, que compartilham o leito, que carregam as crianças no sling ou não escolarizam tão cedo) precisam elaborar o discurso - E SER COERENTE - pra dizer como isso não tem nada a ver com ser mais ou menos mãe. Se não temos mulheres empoderadas o suficiente para responder sinceramente a essa questão, aí a questão é outra e o buraco é bem mais fundo.

Vou dar um exemplo.

No ano passado, um blog postou um texto que falava sobre uma suposta "maternidade das cavernas", referindo-se às escolhas como o parto ativo, a maternidade ativa e afins como sendo um retorno à primitividade. Eu me senti confrontada. Mas estou pronta para argumentar porque não é das cavernas a minha forma de maternar.

O mesmo vale para a situação inversa. Quem se sentiu confrontada pela pergunta "Você é mãe o suficiente?", ao lado de uma imagem como aquela, está pronta pro debate? Mas para o bom debate, não praquele #mimimi desenfreado e apelativo de "amor de mãe", "eu também amo meu filho", "eu só quero o melhor pra ele".

Embora o editor da revista tenha afirmado que "É uma capa provocativa. Nós estamos propondo um questionamento que não poderia ser mais importante: como podemos criar nossos filhos", é claro que teve a intenção de chamar a atenção pela polêmica e ganhar dinheiro - o Tio Sam é implacável.

Mas ainda assim eu gostei.

Porque evidenciou, pelo menos no contexto brasileiro, a diferença entre modos de maternar e o embate que existe por trás disso. Não, não é bom que ele exista. Sim, seria bom que todas estivéssemos do mesmo lado. Mas quem se sentiu atacada pela capa e sua pergunta tem que lembrar que o lado mais atacado tem sido - muito paradoxalmente - o de quem tem optado por formas não hegemônicas de criação de filhos. Porque isso é o "diferente", é o "bizarro". E, também paradoxalmente, não foram essas pessoas que maternam diferentememente que criaram - e usam - a expressão "menos mãe". Jamais! Quando usam, é apenas em referência ao que mães tradicionais afirmam que não são.

Ou seja: apareceu uma forma diferente de maternar. E a forma tradicional logo tratou de tentar se justificar: ai, mas eu não sou menos mãe porque não faço isso ou aquilo. Ninguém disse que é, mas a justificativa apareceu mesmo assim. Talvez por comparação implícita. Porque quando dizemos que maternamos ativamente, conscientemente, apegadamente, falamos em amor, afeto, proximidade, não violência, e isso é ESCANCARADAMENTE bom. Para todos. Aí parece que estamos dizendo: o resto não é bom, o tradicional não é bom. Mas não dissemos isso e não estamos dizendo.

Por isso gostei tanto do tom de confronto da capa, do confronto da mãe com ela mesma, e seria ótimo se, às vésperas do dia das mães, todas estivessem se fazendo a pergunta: "E aí, negona? Tá sendo mãe o suficiente?!". E é o que toda mãe se pergunta sempre, mas em forma de culpa.

Deixemos a sacrossanta culpa materna de lado. É só por ela que esse furor todo apareceu. Porque ao ser questionada sobre sua prática como mãe, ela surge, ela domina, ela grita.

É por isso que eu acredito que o gerador de lero-lero não foi a imagem, mas a pergunta, o questionamento. Parece que as pessoas se sentiram muito agredidas, confrontadas com a frase "Você é mãe o suficiente?".

O que há de tão problemático em fazer mulheres se questionarem sobre isso? Não é o que fazem em seu íntimo todos os dias, de maneira velada?

Se nós interpretarmos "ser mãe o suficiente para nossos próprios valores", não há nada de mau nisso. Acontece que as pessoas sempre pensam em termos de "ser mãe o suficiente para inglês ver" e interpretam como "Sou mãe o suficiente para o que a sociedade julga ser?" e isso é falta de posicionamento no mundo.
Gostei da frase. Gostei da capa. Gostei da polêmica. Gostei do confronto.

Mas porque eu o encarei como sendo o confronto da mãe com a mãe. A ponto de fazer a mim mesma a pergunta:

"Tenho sido mãe o suficiente para a minha Clara?".

E a resposta foi: não! Não estou. Posso melhorar.

Então, por gentileza, tire seu #mimimi do caminho que eu vou em busca de ser uma mãe melhor.


Texto de Lígia Sena
Publicado no blog Cientista Que Virou Mãe

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